sábado, 20 de agosto de 2016

Campo da Educação Somática e Hatha Yoga – Diálogos experimentados - Parte 3

Educação Somática e Hatha Yoga – articulações e adaptações 

“Sentemos todos no chão com as pernas cruzadas tocando os ísquios (esses ossinhos do bumbum) no chão”. Esta seria uma primeira orientação para um público jovem, saudável, e não-cego, mas para os participantes do projeto essa orientação deve ser: “Sentemos como for possível. Encostem-se na parede caso sintam necessidade. Sentem em uma cadeira caso não consigam, no dia de hoje, sentar no chão; Abram bem o peito. Deixem a coluna o mais retinha possível, e o pescoço seguindo alinhamento da coluna”. O que acontece: a coluna não consegue ficar reta, o pescoço tampouco (pois entre as pessoas cegas, muitas vezes, os ouvidos são os olhos, então para estimular o ouvido levam junto o pescoço na lateral, criando um vício corporal que, ao longo dos anos, tende a desestruturar a própria concepção sobre o que é ter o pescoço seguindo o alinhamento da coluna). Da mesma forma, o que são os ísquios? Flagrei um aluno com a mão no quadril enquanto orientava para que sentissem os ossinhos lá embaixo do bumbum perto da virilha. Não, ele não queria tocar em si. E eis mais um desafio - para mim e para eles.

Esquerda, direita, em cima, embaixo, lateral do corpo, tudo, absolutamente tudo sendo reapropriado ou, mesmo, apropriado. Yoga para pessoas cegas requer descrição densa de todos os movimentos solicitados. Requer não só a minha própria habilidade de fazê-lo, como requer também a capacidade de escuta dos/as participantes, o que, aos poucos tem sido trabalhado. Apenas duas participantes respondem fidedignamente às orientações. Os/as demais têm uma capacidade muito reduzida de escuta, e a isso não me refiro ao aspecto biológico. Existem elementos que ainda não sou capaz de analisar aqui, mas apenas exercitando as possibilidades dessa análise diria que os/as participantes ainda se sentem tensos com a “exposição” do seu corpo (e isso no caso do homem), pela perda absoluta da vergonha do filtro do olhar do outro – o que é bom por um lado, mas difícil num ambiente em que o silêncio é necessário. Por fim, essa capacidade de escuta fica reduzida a zero quando se está definitivamente “out” pelos efeitos estendidos dos remédios tomados dormir à noite. Há um caso recorrente em que, por exemplo, a participante dorme sentada enquanto a perna está dobrada e o braço por cima da perna. Sono durante uma atividade – remédios da noite fazendo efeito no dia – tudo junto e ao mesmo. Em cada negação, em cada vício, em cada não-escuta, em cada sono, o corpo pede para ser acordado, e ele vai, aos poucos.


Breve Relato Etnográfico


No primeiro encontro foram realizadas orientações gerais repassadas oralmente, mas também por meio da distribuição do material, gentilmente traduzido em braile, pelo Instituto de Pessoas Cegas, e os/as participantes se apresentaram, bem como às limitações corporais e emocionais. O segundo dia, sim, foi aquele em que se tornou explícita a dificuldade dos/as participantes em localizar partes do seu corpo e até mesmo direcioná-las de acordo com as orientações.  A partir do terceiro dia, após observação da respiração (apenas observação, como parte do processo inicial de se conhecer, de conhecer o ritmo, as partes do corpo mobilizadas durante a respiração, músculos acessados, sensações, entre outras) foram iniciados os trabalhos do tato consciente e eutonia. O desenvolvimento da consciência de toda superfície da pele é o ponto de partida de qualquer experiência em eutonia. Eutonia (ou equilíbrio do tônus) é considerado um dos primeiros métodos de educação somática e, segundo Gandolfo, “é uma prática terapêutica e pedagógica que leva em conta as relações entre mente e corpo a partir da experiência corporal” (GANDOLFO, 2013, p.1). 

Toques suaves em todas as partes do corpo, desde o menor dedo do pé até o couro cabeludo, sentindo a pele (textura, temperatura, marcas, cicatrizes), os ossos, calos, nervos, o peso, volume. Cada um, em seu tapetinho, orientados a respirarem enquanto realizam suavemente o toque em seu corpo, o (re)conhecimento. 

A partir do quarto dia de encontro foram inseridas bolinhas nas atividades com o corpo e é aqui que entra a técnica de ambitato . Segundo Bolsanello (2012, p.5): 

O objeto é a porta de entrada de uma distinção sensorial entre pele, fáscia, tendão, aponevrose, músculo, osso, órgão, líquidos orgânicos. Ele é um “pretexto” para que o aluno possa sentir que seu corpo é igual ou diferente da textura de uma bola, por exemplo. 

Para corroborar a prática do ambitato, também foram inseridas faixas de tecido e blocos que, adaptados às práticas de âsanas, contribuem para indicar o alinhamento dos eixos articulares. Como já dito aqui, em outras palavras, os/as participantes têm um vocabulário gestual restrito e, pouco e pouco têm sido estimulados à execução de uma mesma tarefa de maneiras diferentes, e isso acontece a partir da noção de circuito. É pela identificação do motor do movimento que é possível a variação de circuito, onde se pode, através dele, “escolher entre diferentes caminhos aquele que é o mais apropriado para a execução de um dado movimento em um dado momento” (BOLSANELL0, p. 8). Exemplo de aplicação da técnica de variação de circuito está no modo de levantar depois da Âsana de relaxamento - Śavasana. O hábito os puxa pelo tronco pela frente, mas a recomendação é que se levantem sempre pelo lado direito, já que o coração fica do lado esquerdo e sobre ele não se recomenda colocar o peso do corpo. Além disso, subir pela frente, demanda certo esforço do pescoço e cervical, o que em corpos sedentários pode levar a lesões.

Principalmente naqueles que relataram ansiedade e depressão, pôde-se logo perceber que existe uma certa estagnação corporal pela presença de movimentos “quadrados” e, sobre isso, sabemos que tal estagnação pode acontecer por algum trauma físico ou psíquico, diminuição das sensações por ocasião do que Bolsonello conceitua como sendo “anestesia senso-motora” e assim por diante. Neste caso, a técnicas de referência são a automicromobilização, a modulação respiratória e os diálogos entre as unidades de coordenação motora que apoiam, entre outras coisas, músculos que nem sempre são trabalhados como, por exemplo, do assoalho pélvico. 

Muito ainda poderia e deverá ser dito acerca do projeto, pois está em pleno desenvolvimento e em processo de experimentação. Temporariamente, nós podemos dizer que entre Yoga e dança as intersecções são múltiplas e, para mim, começaram a fazer total sentido por um dos mais importantes símbolos da mitologia hindu - Shiva, o Senhor Shiva Nataraja - dançarino do universo e criador do Yoga. É a partir da explicação de seu simbolismo que este artigo é finalizado.

Shiva sob o aspecto Nataraja aparece como o rei (raja) dos dançarinos (nata). Ele dança dentro de um círculo de fogo, símbolo da renovação e, através de sua dança, Nataraja cria, conserva e destrói o universo. Ela representa o eterno movimento do universo que foi impulsionado pelo ritmo do tambor e da dança. Apesar de seus movimentos serem dinâmicos, como mostram seus cabelos esvoaçantes, Shiva Nataraja permanece com seus olhos parados, olhando internamente, em atitude meditativa. Ele não se envolve com a dança do universo pois sabe que ela não é permanente. Como um yogue, ele se fixa em sua própria natureza, seu ser interior, que é perene. Em uma das mãos, ele segura o Damaru, o tambor em forma de ampulheta com o qual marca o ritmo cósmico e o fluir do tempo. Na outra, traz uma chama, símbolo da transformação e da destruição de tudo que é ilusório. As outras duas mãos, encontram-se em gestos específicos. A direita, cuja palma está a mostra, representa um gesto de proteção e bênçãos (abhaya mudrá). A esquerda representa a tromba de um elefante, aquele que destrói os obstáculos. Nataraja pisa com seu pé direito sobre as costas de um anão. Ele é o demônio da ignorância interior, a ignorância que nos impede de perceber nosso verdadeiro eu. O pedestal da estátua é uma flor de lótus, símbolo do mundo manifestado. A imagem toda nos diz: "Vá além do mundo das aparências, vença a ignorância interior e seja como o Sr Shiva, o meditador, aquele que enxerga a verdade através do olho que tudo vê (terceiro olho, Ájña Chakra). "

 


Bibliografia:


BOLSANELLO, Débora Pereira. "A Educação Somática e o contemporâneo profissional da dança." 

Revista DAPesquisa, Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina 9 (2012): 1-17.http://www.ceart.udesc.br/dapesquisa/files/9/01CENICAS_Debora_Pereira_Bolsanello.pdf.

KUPFER, Pedro. Formação em Yoga. Curso Livre. Módulo 1. 2009.

GANDOLFO, Luciana. Eutonia: A percepção da variação do tônus através da atenção às sensações corporais. In: ENCONTRO PARANAENSE, CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOTERAPIAS CORPORAIS. XVIII, XIII, 2013. Anais: Curitiba: Centro Reichiano , 2013 [ISBN- 978-85-87691-23-1].

PELBART, Peter Pál. Biopolítica. Sala Preta, São Paulo, USP, v. 7, n. 1, p. 57-66, 2007




Nenhum comentário:

Postar um comentário