sábado, 20 de agosto de 2016

Campo da Educação Somática e Hatha Yoga – Diálogos experimentados - Parte 2





Corpo na contemporaneidade, ou "Quem está realmente vivo, hoje?" Participam do projeto de Yoga com pessoas cegas e com baixa visão, quatro mulheres e um homem, todos na faixa etária de 50 a 75 anos (*agora em outubro são nove - seis mulheres e três homens). Por já serem adultos idosos (ou quase idosos), e também sedentários, seus corpos têm demandado adaptações constantes que, no caso, devem acontecer para além dos cuidados que normalmente já seriam tomados pelos limites que a falta da visão impõe. Apenas um dos homens é cego desde o nascimento, as demais perderam a visão gradativamente, e uma delas tem baixa visão. Além da idade avançada e sedentarismo, entre os seus relatos estão as seguintes doenças e inscrições médicas: pressão alta, glaucoma, câncer controlado, ansiedade, estresse, síndrome de pânico, diabetes, asma, cirurgias e transplantes, ou seja, um grande desafio para mim e para eles.
Nenhum deles, ao longo de suas vidas, realizou atividades físicas, e apenas uma das mulheres já havia praticado Yoga, mas desistiu porque estava perdendo a visão e sentiu vergonha dos erros que estava cometendo enquanto tentava realizar as Âsanas. São histórias assim, de corpos com pouca ou nenhuma consciência de suas infinitas possibilidades, rígidos pelas inconstâncias do espaço urbano, dos conservadorismos morais e pelo imobilismo próprio aos corpos contemporâneos que, pouco e pouco, são desveladas pela desconstrução dos valores pela mobilização sutil de cada pequena parte de seus corpos, dos seus “sentires” de suas subjetividades. 
Os valores normatizantes que pouco e pouco engessam e adoecem os corpos são a expressão genuína do poder sobre o corpo, como nos diz Peter Pál:
...o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou inteiramente, e as pôs para trabalhar. Desde os genes, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade. Tudo isso foi violado, invadido, colonizado; quando não diretamente expropriado pelos poderes. Mas o que são os poderes? Digamos, para ir rápido, com todos os riscos de simplificação: as ciências, o capital, o Estado, a mídia etc. Os mecanismos diversos pelos quais se exercem esses poderes são anônimos, esparramados, flexíveis (PELBART, 2007, p.57)

É pela possibilidade de construir um corpo novo que reage ao poder institucional ou capitalizado pela sobrevida que tanto o Hatha Yoga, quanto o campo de Educação Somática, se justificam. 
“A construção do corpo novo está vinculada à iniciação, o novo ‘nascimento’ do praticante. Constrói-se o corpo novo para perder a identificação com o ‘antigo’, vinculado a couraças de tensão muscular, saskãras e latências mentais. O Haţha Yoga quer dar um corpo novo ao praticante que ele mesmo irá construir, célula por célula, fibra por fibra. Usando esse novo corpo como instrumento, ele poderá avançar a passos largos em direção à meta do Yoga. O único que se precisa ter é muita disposição e força de vontade”. (KUPFER, 2009, p. 48)

“(...) a Educação Somática se coloca como uma via de descondicionamento: dispõem de uma vasta gama de estratégias pedagógicas para levar os alunos a ampliarem sua noção de corpo, refletindo sobre aquilo que chamam “meu corpo” como sendo muitas vezes uma entidade (de) formada por valores socioculturais. Os diferentes métodos de educação somática orientam a pessoa em um processo de empoderamento que passa pelo sentir o próprio corpo, negociando tempos e espaços”. (BOLSANELLO, 2012, p 3)

Como pode ser observado acima, em ambas linguagens, o parti pris é o corpo biológico, o corpo que o biopoder contemporâneo, segundo Agamben, reduz a vida à sobrevida biológica. 
“A sobrevida é a vida humana reduzida ao seu mínimo biológico, é a vida sem forma, reduzida ao mero fato biológico. É o que Agamben chama de vida nua”. Ainda de acordo com Peter Pál Pelbart, seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, na sua dor, no encontro com a exterioridade, na sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo e capaz de ser afetado por elas. Seria preciso retomar o corpo na sua afectibilidade, no seu poder de ser afetado e de afetar

Tem sido com essa ideia em mente que tapetes, bloquinhos, faixas, bolinhas e o toque em si têm subsidiado essa retomada do corpo. Através da propriocepção pelo toque do corpo com as próprias mãos, por exemplo, uma participante redescobriu a cicatriz de uma cirurgia para retirada de um nódulo de câncer realizado há mais de 10 anos. Ela disse que tinha quebrado um tabu em relação a si mesma. Foi ali que percebi que estava no caminho certo. Seria necessário explorar esse toque o quanto fosse possível para chegarmos aos Âsanas propriamente ditos que, de algum modo, já requerem algum grau de consciência sobre o corpo. Provavelmente eu poderia receber críticas neste ponto, mas digo isto porque, entre os exercícios pensados e realizados com participantes, estão aqueles do Pavanamuktasana, que são muito suaves e indicados, entre outras coisas, para processos reumáticos, períodos pós-operatórios, para gestantes e idosos. A questão é que, mesmo o Pavanamuktasana, para o perfil dos/as participantes supracitado, já parece algo que demanda um momento anterior, e isso dá, certamente, por ocasião do limite da falta de visão, e é aqui que entra a educação somática em diálogo com o Yoga.


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