sábado, 20 de agosto de 2016

Campo da Educação Somática e Hatha Yoga – Diálogos experimentados - Parte 1


   





Este post que está dividido em três partes, trata-se na verdade de um artigo escrito para o V Congresso Internacional SESC de Arte/Educação que analisa as articulações entre os fundamentos da Hatha Yoga e o campo da Educação somática. O foco estará nas intersecções entre as referidas práticas que têm colaborado com o desenvolvimento do Projeto de yoga com pessoas cegas e com baixa visão realizado com o apoio da Escola Especial Instituto de Cegos, em Recife, Nordeste do Brasil. O projeto foi iniciado em abril do corrente ano e hoje conta com cinco participantes regulares (*atualizando: agora em outubro temos nove participantes). É sobre essa experiência, e a partir dos diferentes métodos em educação somática aplicados, tais como eutonia, interpretação do mapa gestual, ambitato, variação de circuito, automicromobilização e modulação respiratória, entre outras, de que fala o artigo.  O projeto foi idealizado por mim por ocasião de um problema pessoal de perda de córnea e tem por objetivo levar às pessoas os ensinamentos do yoga que, mais do que relativos apenas aos exercícios físicos, dizem respeito ao caminho rumo ao autoconhecimento por meio da consciência corporal e respiração consciente, elementos estes que são fundantes no campo da educação somática. 
Apenas a título de introdução, neste espaço que está reservado à arte e à educação, exponho aqui algumas ideias em torno do Yoga que significa união, mas também trabalho, aplicação, controle da mente e dos sentidos, transcendência do ego, ou caminho rumo ao autoconhecimento. Significa ainda liberdade, pois cultiva o discernimento como meio para destruir a ignorância. Por fim, Yoga não é a prática, mas o estado de consciência em que se entra quando são aplicadas as técnicas de respiração e as posturas (ou âsanas). 
O Hatha Yoga é um método de Yoga Tântrico que tem por fundamento o despertar por meio do esforço extremo, seja do ponto de vista físico, seja do ponto de vista mental. Tem entre seus principais fundamentos, a prática de âsanas (ou posturas confortáveis), prãņãyãma (ou controle da respiração) e também as purificações (şaţkarma, trãtaka, kapãlabhti, nauli, neti, dhauti e vasti).
Para o presente exercício dissertativo nos interessam todos os elementos do Hatha Yoga, isto porque na interlocução entre yoga e dança, todos/as estão presentes. As âsanas, por exemplo, despertam a estrutura biológica por meio de exercícios físicos; o prãņãyãma propicia mediante exercícios respiratórios contínuos, o controle do movimento da mente (FEUERSTEIN, 2005, p.180), e as purificações se assemelham àquilo que Artaud chama um corpo sem órgãos, isto porque os órgãos acumulam toxinas e aprisionam o corpo, e as purificações são a base para que se possamos nos desfazer de tudo que nos aprisiona.  
Toda a tematização do corpo sem órgãos é uma variação em torno deste tema biopolítico por excelência. A vida se desfazendo de tudo aquilo que a aprisiona. E o que a aprisiona, dentre outras coisas, é o que Artaud, na sua loucura, conseguiu formular; o que nos aprisiona é também o organismo, os órgãos. (PELBART, 2007, p. 64)

Sobre o projeto de yoga com pessoas cegas

O projeto foi iniciado em abril de 2016, e hoje conta com cinco participantes regulares. É um projeto muito recente, em pleno processo de experimentação, e o relato etnográfico a seguir é resultado das observações realizadas ao longo dos encontros. Para que cheguemos ao relato propriamente dito, e para uma melhor compreensão do processo, faz-se necessária uma breve consideração do meu encontro com um instrutor de yoga e uma bailarina, ambos cegos, e que se tornaram referências na prática de investigação corporal. Além disso influenciaram nas ideias que tornaram possíveis as adaptações e consequente subsídios para superação das dificuldades que certamente surgiriam ao longo do caminho. 
Figue Diel, professor de Yoga e surfista – Eu conheci Figue em Mariscal - SC, “terra” de surfistas de águas geladas. Ele era uma promessa do surf aos 16 anos, mas sofreu um grave acidente de carro e ficou cego. Esteve depressivo ao longo de 10 anos, e aos 26 anos (acho que essa é a história) se lançou na vida realizando, como eu, um curso de yoga.  Figue nos dias de hoje, além de surfista, é instrutor de yoga, e ele foi um dos professores que fizeram parte da minha formação a partir do curso livre para Formação de Instrutores/as de Yoga do professor Pedro Kupfer. A presença de Figue é digna de registro pois, há seis anos aproximadamente, realizo acompanhamentos periódicos da córnea, esta que é bem acabadinha como a de uma velhinha de 60 anos (segundo o oftalmo). Saramago, em “Ensaio sobre a cegueira”, fala do choque das pessoas quando estas constatam que estão cegas: “estou cego!”. Também assim é o choque quando a cegueira constatada é aquela que, em nada, tem a ver com o lado sensual da visão. Assim tem sido comigo desde o encontro com Figue, desde o encontro com Jô e com todas as pessoas cegas que tenho encontrado enquanto (re) conheço cegueiras de toda ordem em mim e no mundo. Jô, a bailarina – Ela faz parte do grupo Giradança, do Rio Grande do Norte - RN.   Foi com ela que aprendi (ainda mais do que a partir do Hatha yoga), que respiração é tudo. “Respira, gente! Respira!”, e assim, sentindo a respiração, Jô corre e dança em velocidade sem esbarrar em ninguém, como quem vê além do que está dado, além do corpo, simplesmente além. Ela ficou cega aos 23 anos. Perguntei-lhe como era sua vida antes de ficar cega e ela disse: “…mulher, eu não era gente”. Aquilo ficou muito marcado em minha memória, pois ela definitivamente havia refeito sua vida no sentido da liberdade após ter perdido o sentido da visão. Aguçara de modo complexo e, por vezes, perturbador, todos os outros sentidos em meio ao processo da dança, colocando em xeque a percepção das pessoas que, em tese, enxergam. A verdade é que somos muitíssimos limitados, e aqui não cabem metáforas, afinal, como disse Saramago, “só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”. Acho que é bem por aí…
Tive a oportunidade de conhecer e compartilhar pelo menos dois dias ao lado de Jô graças ao Multiplicando Olhares, projeto de dança com pessoas cegas, do Coletivo Lugar Comum, que a trouxe do Rio Grande do Norte para nos ensinar a enxergar melhor o mundo na medida em que mergulhamos em nossas próprias cegueiras.  A partir do referido projeto aprendi que, para além das dificuldades, há sim muita liberdade entre pessoas cegas e com baixa visão. Entre as dificuldades, eu percebi, por exemplo, que se há um mundo machista para as meninas/moças que veem, esse mundo é ainda mais castrador quando as meninas/moças são cegas, isto porque a possibilidade da liberdade é inversamente proporcional ao conservadorismo de suas famílias (principalmente se têm preceitos religiosos fundamentalistas) de quem, com grande recorrência, dependem, quer seja para ter permissão para fazer algo, ou para “simplesmente” se locomover. No caso de Jô (que também relatou os “receios” de sua família), por já ser uma adulta ela assumiu a responsabilidade e as consequências sobre suas escolhas num contexto em que sair sozinha, e à noite, seja para um curso de dança, ou qualquer outro lugar, tem sido perigoso para qualquer mulher nesse país cujo feminicídio alcança números assustadores. 
A (não) acessibilidade é outro grande problema, seja no que diz respeito às calçadas, seja no que diz respeito aos transportes públicos. Estes são, com certeza, grandes problemas que limitam a vida de quem se lança na superação de outros limites, inclusive existenciais. Apesar deles, hoje sei que cegos/as têm facebook (e a tecnologia da “fala” tem sido maravilhosa e útil nesse sentido), cegos/as jogam futebol de salão, cegos/as dançam MUITO, cegos/as são namoradores/as, vaidosos/as, enfim, pessoas cegas são pessoas tais como aquelas que veem. O que as diferenciam é que elas precisam de um pouco mais daquilo que temos, mas também precisamos (e muito): respiração para que seus ouvidos sejam seus olhos, toques/tato/afeto para entender com as mãos o que seus olhos não alcançam, discernimento, pois nesse mundo de visionários a cegueira é coletiva, ou seja, o que as pessoas cegas precisam é o que todos/as nós precisamos quando da resistência à vida nua: respiração, autoconhecimento, afeto e sabedoria. 
Figue e Jô apontaram os caminhos dessa resistência que pula sobre a própria sombra pela consciência fina, finíssima, do próprio corpo.


Um comentário:

  1. Estou muito feliz de ler o seu projeto de yoga para pessoas cegas. Eu estou nesse caminho, terminando uma segunda formação em Yoga, dessa vez Yoga integral e meu projeto é oferecer aulas para deficiêntes visuais. E saí a procura de pessoas que tenham ou tiveram essa experiência. Gostaria de conversar mais com vc. Um abraço,
    Leila

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